Imagine uma bolsa repleta de livros selecionados na biblioteca da escola que vai para a casa com o aluno e passa pelas mãos do pais, dos avós, de irmãos e do restante da família. Agora imagine que os livros transportados pelos alunos tratam da cultura e da história exclusivamente africana e afro-brasileira, e a família em questão é de pessoas negras. Foi assim que uma professora de uma escola estadual de Encruzilhada do Sul conseguiu desaguar o tema da consciência negra para além dos muros da escola e, dessa forma, contribuir para transformar a percepção de uma comunidade. O Projeto Afroler – A leitura no Compasso da História Africana foi o vencedor na categoria Raça no 5º Prêmio RBS de Educação, realizado no dia 8 de dezembro, na Capital.
“Realizado com esse nome e esse formato desde 2016, Afroler é fruto do Afro Orgulho da Raça, grupo de dança e coreografias realizado há 21 anos na Escola Estadual de Educação Básica Borges de Medeiros com o objetivo de resgatar e valorizar a cultura africana e afro-brasileira. Por meio dele, começamos a sentir uma necessidade de aprofundar o conhecimento acerca dessa cultura para dar mais sentido ao conteúdo coreográfico. Como os jovens vão coreografar os lanceiros negros se não sabem nada sobre eles? Para fazer a coreografia, o aluno tem de conhecer a história, a leitura sempre fez parte do grupo”, explica a professora e vencedora do Prêmio, Carmen Machado de Abreu, de 54 anos.
Foi a partir dessa inquietação que a professora de Educação Física resolveu reunir professores de várias áreas para organizar um projeto elaborado e de mais alcance, já que nutria um desejo especial de levar a cultura africana para além dos muros da escola, integrando famílias e comunidade.
A partir da escolha feita pelos próprios integrantes do grupo Afro Orgulho da Raça, cerca de 60 alunos, em conjunto com os professores, Carmem começou a selecionar livros na biblioteca – a maior parte enviados pela Fundação Cultural Palmares (FCP), entidade que tem por finalidade promover e preservar a cultura afro-brasileira, e de A Cor da Cultura, projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira.
Com as obras divididas por faixa etária, Carmem e os colegas criaram a “bolsa literária”, uma sacola com obras de qualidade e propriedade sobre o tema escolhido que seria levada para a casa dos alunos. Nas residências, onde as obras podiam ficar cerca de três dias, o estímulo era que circulassem livremente pelos integrantes da família no dia a dia, fossem lidos com calma, pesquisados, discutidos em grupo.
“Fiz um curso em 1996 sobre danças brasileiras para escolares que me encantou muito. A musicalidade, o toque de tambores, foi amor à primeira vista. A riqueza da história africana me atrai, povos com reis e rainhas que foram arrancados de seus continentes onde tinham uma sabedoria, cultura e saberes impressionantes. A cultura afro-brasileira é linda e tem uma gama maravilhosa de possibilidades para a nossa formação”, explica a professora, que foi finalista na categoria com as colegas Monaliza Furtado, de Montenegro, e Meri Helen Bjerk Vieira Ribeiro, de Pelotas (centro e à dir. na foto acima, respectivamente).
Ao levar a história africana e afro-brasileira para a residência dos estudantes, valorizando sua cultura e suas crenças, o objetivo do Afroler é empoderar pessoas de uma raça historicamente vítima de racismo, preconceito, desigualdades e tantas outras violências, abrindo um leque de possibilidades poucas vezes explorado na sociedade.
“Queríamos dar a chance desses jovens e seus parentes de conhecer mais a sua história, de transformá-los em cidadãos mais críticos, informados, com autonomia, com propriedade e sabendo muito mais o seu lugar na sociedade. Conseguimos transformar a percepção de muitas pessoas e resgatar a auto-estima delas”, acrescenta.
A conclusão de Carmem é confirmada por Denise Duarte, mãe de Yasmin, aluna e integrante do grupo Afro Orgulho da Raça.
“O grupo Afro Orgulho da Raça mudou a nossa vida, ele fez com que nós passássemos a valorizar a nossa cor, a nossa raça, o nosso cabelo, fez com que a gente aceitasse a nossa negritude. A Bolsa Literária, indo para a casa sempre com livros que valorizam a nossa raça e as nossas características físicas, permitindo que conhecêssemos a nossa história que a gente não conhecia, foi uma coisa incrível que aconteceu na nossa vida. Meus filhos ficaram mais orgulhosos de ser negros, hoje em dia, cientes do seu papel e sua importância na história, tiram de letra o preconceito sofrido pois estão com a auto-estima lá em cima”, revela Denise no vídeo da inscrição do projeto no Prêmio.
Além disso, o projeto proporcionou rodas de conversa e de conhecimento, valorizando a questão cultural através da expressão cultural, usando o espaço da escola para construir identidade de igualdade e inclusão.
No seu segundo ano, o Afroler já envolveu entre 60 e 80 alunos da escola. Como um grupo representativo da cultura africana, as formações do grupo Afro Orgulho da Raça contemplam, em sua maioria, pessoas negras.
Carmem diz que não parou de receber mensagens de cumprimentos e parabéns desde que retornou a Encruzilhada do Sul depois da premiação. Motivada, ela avalia a conquista como um passo em direção a uma sociedade mais justa e igualitária.
“A cidade está em festa, feliz com a repercussão e valorizando o nosso projeto. A nossa inscrição foi uma consequência, não uma causa, é o resultado de um trabalho realizado há tanto tempo e com tantas pessoas feito com, acima de tudo, muito amor. A conquista do 5º Premio RBS de Educação veio coroar o nosso comprometimento e a nossa responsabilidade que temos com todas as pessoas. Que consigamos difundir a nossa mensagem de respeito e admiração para todo o Estado porque a causa não é só dos negros, é de todos nós”, encerra a professora.