Em uma tarde nublada e fria, quatro jovens carregam um violão na mão e várias ideias na cabeça. Na Praça do Sapo, na Vila Bom Jesus, crianças e adolescentes de folga pela paralisação geral dos professores municipais brincam e praticam esportes. Quando surgem as primeiras notas, a praça para: adolescentes com bicicletas se aproximam para ouvir as rimas do Grupo Griô.
“Quando eu…
Tô lá em baixo por não verem meu esforço,
Penso que pra erguer um arranha céu,
Primeiro faz-se um poço”.
A praça é rodeada por prédios altos, erguidos por construtoras ao fim da Avenida Ipiranga, de um lado; do outro, a Vila Bom Jesus, seus casebres e ruas estreitas. Ao canto, o abandonado Centro Gaúcho, que foi um lugar de prática de esportes no passado. Na praça, um ginásio de esportes em estado de conservação razoável.
Eu sei que é osso, moço.
Mas não vou arriscar o pescoço,
Se outro vir com arma na mão querendo levar o meu esforço.
– Teve uma vez que eu vim aqui e um cara me disse: ‘nossa, eu já vi essa gurizada andar com tudo nas costas, mas com violão eu nunca vi’. Isso é forte, né?
Bruno Amaral, compositor da música “A Vista Mais Bela” – que ilustra essa matéria – estuda história na Uniasselvi, é educador social e tem 20 anos de idade. Ao lado de Diogo Rezende (18 anos), Lucas Oliveira (20) e Felipe Mendonça (21), eles compõem o projeto Expoente Zero, que tem o objetivo de mostrar à sociedade o que acontece nas periferias de Porto Alegre.
– É uma plataforma audiovisual que divulga a cultura, nas comunidades, de forma gratuita e acessível – afirma Bruno. – Queremos que todas as comunidades se tornem uma coisa só. O cara que vive na Bonja não fala com o cara que vive na Lomba do Pinheiro. Queremos que tudo isso se torne um único objetivo, para acabar com os rótulos. A primeira coisa que vem na nossa cabeça é violência, tráfico de drogas. Olhando de outra forma, as pessoas se sentem mais valorizadas, e vemos a periferia como um local de possibilidades – declara o educador.
Além do Expoente Zero, que no momento é uma página no Facebook, e do grupo de rap, Bruno também faz parte dos projetos Aláfia e Figueira Negra – descobrindo percursos, identidades e protagonismos. Este último, desenvolvido em parceria com ao Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), tem o objetivo de resgatar a história de comunidades negras em Alvorada. Além disso, Bruno conquistou a segunda edição do Slam Peleia e do Slam Conexões, eventos nos quais jovens expressam, em formato de competição, a poesia livre através do hip-hop.
De acordo com o Censo de 2010, 63,35% da população de Porto Alegre vive em bairros nos quais a renda familiar fica abaixo de 5 salários mínimos. Na cidade, o conceito de periferia fica disperso por bolsões de pobreza localizados em áreas geograficamente próximas do centro econômico – como a região Cruzeiro, onde 18,59% da população está abaixo da linha da pobreza – e áreas ricas localizadas geograficamente distantes, como o bairro Pedra Redonda, com maior média de renda familiar da cidade. Ainda assim, no geral, as áreas com piores números relativos à educação, como nas regiões Nordeste e Ilhas, que detém ao mesmo tempo os maiores índices de analfabetismo funcional e o maior percentual de domicílios com renda de até ½ salário mínimo.
Dessa forma, romper a estigmatização social da periferia também ajuda a ressignificar a educação nessas áreas. De acordo com o professor Maurício Ernica, a reprodução de um modelo escolar único, e mais precário, nas instituições periféricas, ajuda a aprofundar as desigualdades sociais.
Existe um conjunto de pesquisas que mostram que a oferta educacional nas periferias, ou nas regiões mais pobres, é uma oferta de oportunidades mais restritas que a assegurada nas regiões mais ricas. A oferta educacional nas regiões mais pobres tende a se mostrar mais restrita. A gente tem um quadro de discriminação negativa, um quadro que inverte o sinal. Eu tenho uma oferta mais restrita e mais precária para as pessoas que já estão em posição de desvantagem. Isso faz com que o sistema escolar aprofunde as desigualdades que já seriam reproduzidas em uma situação de oferta igual.
Para Maurício, que leciona na Faculdade de Educação da Unicamp, a política educacional não pode estar separada de outras políticas sociais – além de proporcionar condições mínimas de subsistência, trabalhar com realidades culturais mais próximas. Confira a entrevista completa.
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“Eu nasci pobre e já ganhei o não.
Olha pra mim!
O não eu já tenho
Agora eu vou pra rua atrás do sim.”
Não sabia que na Bom Jesus tinha um lugar para jogar bola, fazer exercícios. Aqui eu me sinto mais tranquilo, as pessoas se dão bem. Cada um na sua, parecem não se importar. Isso faz eu me sentir bem.
Diogo Rezende, estudante, faz parte do grupo que organiza o Expoente Zero, e não mora na Bom Jesus – mora no Partenon. Conheceu Bruno e os demais membros da Geração Griô através do projeto, que construiu uma “ponte virtual, mas também uma ponte física” entre pessoas com mesmos anseios, interesses e visões sobre o mundo, separados por algumas linhas de ônibus de distância.
A música de trabalho do Geração Griô é “A Vista Mais Bela”, uma brincadeira com o nome do bairro “Bela Vista”, um dos mais nobres da cidade. Na música, um jovem da zona leste encontra uma menina que é “patricinha, filha do patrão”, mas frequenta shows de rap na favela. Ao se relacionar com ele, ela descobre como “a vida é dura na favela”, e “encontra a paz”.
“A vista mais linda é a Bonja.”
Ela disse pro seu pai.
Agora ela já sabe.
A vida é dura na favela.
Minha Cinderela.
Aqui encontrou a paz dela.
A Bonja não é só violência.
É lugar de paz, amor, família e muita cultura de rua.
Que história mais bela, truta.
Poderia sair no jornal.
– A questão principal é quebrar essas fronteiras sociais. Quando falam de onde eu sou, perguntam do tráfico. Quando mostramos que existem grupos de música, grafiteiros, esportistas, as pessoas começam a quebrar esse estigma social”, afirma Bruno Amaral, responsável pela letra da música. – Começam a perguntar sobre arte, não sobre violência. A favela é um lugar de esperança. Isso faz com que essas pessoas comecem a praticar isso nas suas comunidades – afirma Lucas Oliveira, 20 anos. – A gente era assim. Muita vontade de fazer, mas sem saber o que. Não tínhamos uma visão de como chegar nesse objetivo – , completa.
Na opinião de Lucas, o maior problema de projetos que empoderem a periferia e levam ganhos culturais e educacionais para esta região é a falta de continuidade. Ele cita um exemplo próprio:
– Aqui existia um grupo de dança, que começou, as pessoas se interessaram, e não continuou. Peguei esse grupo para dar aula e criei um projeto de música, onde eles fizeram um coral. Só ao colocar isso em prática, a escola ficou mais bem vista”, afirma. “Nas festas juninas, nas festas de final de ano, a comunidade saída de casa para ver o coral e a dança. É só ver a comunidade – o interesse está ali dentro. Fazer pesquisa, ver o que os moradores pensam
– O que faz com que a gente não desista é o apoio dos moradores. Às vezes é bem difícil encontrar todos. O Expoente Zero, hoje, conseguimos fazer com poucas pessoas. A educação pode ser feita em um rap, em um grafite, mesmo em uma conversa entre duas pessoas”, diz Bruno Amaral.
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A Vista Mais Bela: Vídeo OficialVídeo oficial da música gravada pelo grupo Geração Griô
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Slam Peleia – Bruno Amaral
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Slam Peleia – Poesia do Campeão