O professor Mauricio Érnica, da Faculdade de Educação da Unicamp, publicou, em junho de 2017, um artigo na revista Página 22, do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-SP, sobre a contribuição do sistema escolar na reprodução de desigualdades socioeconômicas e sobre como isso dificulta a inclusão social dos estudantes através da educação. Ernica sustenta que o papel da escola na reprodução de desigualdades não se deve apenas à pobreza econômica mas também ao acesso a oportunidades educacionais desenhadas para atender as necessidades educacionais específicas das famílias populares.
Nesta entrevista para a Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho, o professor aprofunda os conceitos mostrados no artigo, discutindo o que é necessário para ampliar as políticas de inclusão.
Na sua opinião, romper a estigmatização que existe na periferia – um local estigmatizado pela violência, entre outras coisas – ajuda a romper um ciclo de desigualdades?
Antes de tudo, gostaria de tentar deixar um pouco mais preciso o que quero dizer quando me refiro a educação e desigualdade. Estou falando do direito à educação, da oportunidade de as pessoas terem acesso à escola, delas terem acesso à escolarização longa, e também do acesso aos saberes que são considerados importantes e que devem ser ensinados pela escola. Estou pensando na desigualdade em relação a esse direito. Na desigualdade que existe entre os grupos sociais para o acesso à escola e aos saberes escolares. O acesso à matrícula, o acesso à permanência na escola, à escolarização mais longa e o acesso à aprendizagem dos saberes que a sociedade considera que são saberes importantes para que as pessoas possam participar do mundo do trabalho, exercer sua cidadania, ter acesso à cultura, etc. Quanto a isso, o que existe é uma enorme desigualdade.
Precisamos detalhar essas desigualdades um pouco mais, trazendo dois elementos ao debate.
Em primeiro lugar, temos sempre que lembrar uma constatação que a sociologia da educação vem fazendo há uns 60 anos. Há uma enorme regularidade, encontrada em todos os lugares em que ela é medida, investigada, há uma enorme associação entre origem social e resultados escolares, tanto os resultados que se referem à trajetória escolar quanto os que se referem à aprendizagem. Essa associação pode ser medida. A forma como ela acontece nas diferentes realidades muda, mas ela sempre existe. A gente sabe que as famílias pertencentes aos grupos sociais economicamente mais pobres e cuja cultura é mais distante da cultura escolar e da cultura a ser transmitida pela escola são aquelas famílias que tendem a estar em desvantagem no sistema escolar, o que restringe suas chances de ter escolarização mais longa e nas carreiras escolares de maior prestígio.
Em segundo lugar, existe um conjunto de pesquisas que mostram, apoiadas em muitas evidências, que a oferta educacional nas periferias, ou nas regiões concentradoras de pobreza, é uma oferta de oportunidades educacionais mais restritas que a oferta existente nas regiões mais ricas, ou menos pobres. Esse é um outro fato.
Juntando esses dois elementos do debate, o que temos? Um quadro de discriminação negativa, um quadro que inverte o sentido do que deveria acontecer e aprofunda as desigualdades. A oferta de oportunidades educacionais é mais restrita e mais precária para as pessoas que já estão em posição de desvantagem. O resultado disso é que o sistema escolar aprofunda as desigualdades educacionais que já seriam reproduzidas em uma situação de oferta igual para todos os grupos.
Voltando à sua pergunta. Quando pesquisadores apresentam esses resultados a moradores das periferias, professores da rede pública, diretores de escola, gestores educacionais de escolas nas periferias, líderes comunitários, normalmente eles ficam incomodados. Dizem o seguinte: “puxa vida, a gente se esforça, tem tanta gente aqui se esforçando tanto, fazendo tanta coisa, existe tanta potência, e você nos conta isso? Parece que esse relato não leva em conta todo o esforço, toda a luta, todo o empenho que muitas pessoas da periferia fazem cotidianamente”.
O que eu respondo? Que todo esse esforço, esse empenho, é real, é verdadeiro e é fundamental. Existem professores comprometidos, gestores super engajados, bons alunos, etc. Mas o problema é que aqueles dois aspectos que mencionei acima limitam a eficácia desses esforços.
É como se eu tivesse nas periferias nadadores com menos recursos nadando contra a maré e, do outro lado, nas regiões mais ricas das cidades, nadadores com mais recursos nadando a favor da maré. Não é que eu não exista alguém nadando – existe. Há muita gente batalhando, se esforçando. Estão se esforçando, mas com muita frequência chega uma oferta educacional mais restrita a famílias que não conhecem os meandros do sistema escolar e que são culturalmente mais distantes do mundo da escola. Isso faz com que a eficácia dos seus esforços, os resultados escolares, em termos de trajetória escolar e de aprendizagem, sejam mais limitados.
Na conclusão do seu artigo, você fala que a política educacional não pode se separar de outras políticas sociais, especialmente as que possam assegurar condições mínimas de subsistência. Seria apenas uma questão de subsistência, ou também o trabalho de visibilidade e de questões culturais relacionado a esses lugares?
Eu agradeço a pergunta. Tem aí um outro assunto delicado, mas que precisa ser dito.
Há pesquisas que buscam reconhecer os esforços, os investimentos, as ações que as famílias dos bairros pobres fazem para manter as criança matriculadas, tentar fazer com que os filhos aprendam o que têm para aprender, etc. É muito importante que a gente reconheça como isso acontece nos bairros concentradores de pobreza, porque com frequência a gente tem na cabeça um tipo de relação com a escola que é próprio das classes médias e das elites letradas. Assumindo como parâmetro da “valorização da escola” a relação com a escola das classes médias e das elites letradas, o que é diferente não é reconhecido esforço, investimento, preocupação, valorização.
Contudo, por mais que se possa reconhecer os esforços educativos específicos dos grupos populares, é importante reconhecer uma outra coisa também: escolarização exige rotina, regularidade, investimento no longo prazo. Exige duração no tempo, constância. A escolarização é um processo longo. São pelo menos dois anos de educação infantil, nove anos de ensino fundamental, três anos de ensino médio. Sem falar da creche, são pelo menos 14 anos. Os investimentos na escolarização exigem rotina cotidiana com uma orientação específica em relação ao tempo, exigem rotina e espera, exigem esforços aqui e agora e uma projeção de ganho futuro. Isso, as famílias que estão no limite da pobreza extrema, pressionadas pelas urgências das necessidades e pelas instabilidades da vida precária não têm condições de sustentar.Eu insisto nesse ponto: para poder assegurar esse tipo de investimento regular e cotidiano, visando ganhos no longo prazo, não dá para a família estar aprisionada pela urgência das necessidades primárias. Tem que ter abrigo garantido, tem que ter condições mínimas de manter as rotinas cotidianas. Não dá para estar acossada pela violência, pela inconstância da alimentação.
Quando pesquisamos famílias em situação de pobreza extrema, encontramos famílias que vivem nesse limite. Um exemplo: encontramos uma família, na Zona Norte de São Paulo, na qual a mãe vivia com as crianças em uma situação bem pobre, mas com certa estabilidade. Era uma estabilidade frágil, mas era uma estabilidade. Essa estabilidade se rompe e a família precisa migrar para um lugar muito pior nas proximidades: uma área de ocupação recente, um morro com risco de deslizamento, uma área com a definição dos terrenos ainda instável, violenta e com muitos conflitos. Essa família vai morar em uma casa muito precária, mal cercada, mal protegida de vento, chuva e frio, sem banheiro. Quando essa família chega a esse limite de pobreza, a criança deixa de ir à escola. Passa-se um tempo, a família consegue recuperar alguma estabilidade, e só então a mãe consegue fazer a criança voltar a frequentar a escola. No caso dessa mãe, em momento algum ela perdeu a escolarização como um valor, mas quando ela perdeu as condições bem objetivas para poder ter o mínimo, a energia dela foi tragada pela luta contra as necessidades mais urgentes. Ora, sem que essas necessidades sejam asseguradas com um mínimo de estabilidade no tempo, não é possível liberar a energia das famílias para assegurar os esforços regulares, contínuos, cotidianos e cujos ganhos são projetos no longo prazo que são próprios da escolarização.
Então, uma parte da tua resposta é a seguinte: para atuar na pobreza extrema, assegurando à população nessas condições o direito à educação, é preciso associar a política social à política educacional.
Se não há garantia de moradia, serviços de saúde funcionando, políticas de proteção social, não será a escola que vai funcionar direito. Até porque, quando as políticas sociais não funcionam direito, onde os problemas todos vão desaguar? Na escola.
Diretor de escola não é assistente social, não é agente de saúde, não é agente de zoonose, não é guarda civil, não é policial, não é gestor de política habitacional. Não tem nem mandato legal, nem instrumento adequado para atuar sobre essas demandas. O que a gente viu, em pesquisas de campo, é que as escolas em regiões periféricas concentradoras de pobreza são muito isoladas de outras políticas sociais e, por isso, as demandas sociais desaguam na escola sem que a escola tenha como lidar com elas. Por mais que eu encontre diretores de escola super empenhados, e daí? Eles estão empenhados, mas não têm nem mandato nem instrumentos adequados para atuar sobre os problemas aparecem cotidianamente. Por isso, as políticas sociais têm que estar presentes de modo articulado nas regiões concentradoras de pobreza.
Além disso, a instituição escolar pressupõe uma certa cultura e uma certa relação das pessoas com essa cultura. Só que essa cultura e essa relação com a cultura supostas pela escola são típicas das famílias escolarizadas. A começar, a língua falada na escola, a língua que a escola valoriza, é a língua dos falantes urbanos cultos. Pode ser a língua do falante culto de Porto Alegre ou de São Paulo, do Recife ou de Brasília, mas é a língua do falante urbano culto. Existe, então, uma outra questão: a aproximação da população culturalmente mais distante da cultura escolar dessa cultura. Isso é um enorme desafio, porque as pesquisas que analisam a evolução da proficiência em leitura e dos conhecimentos matemáticos nos últimos 10 anos mostram que houve melhorias nas médias, mas a melhoria encontrada é puxada pelos grupos mais bem posicionados dentro da escola pública. Os grupos mais pobres, menos escolarizados, mais distantes da cultura escolar, que estão em posição de desvantagem no sistema escolar, esses grupos não têm tido melhorias de aprendizagem nos últimos anos.
Em suma, existe a necessidade estrutural de articular a escola às políticas sociais e existe uma outra necessidade que é construir uma escola que não vá replicar para a população menos escolarizada aquela escola que pressupõe os filhos das famílias letradas, das famílias altamente escolarizadas.
Seria uma reprodução não de um padrão alto, de um padrão de pessoas mais escolarizadas, mas de um padrão adequado à realidade daquela escola?
Eu não estou falando de padrão alto ou padrão baixo. Eu quero assegurar o mesmo direito à educação a todos os grupos sociais. Eu quero, por exemplo, que qualquer criança, de qualquer grupo social, chegue aos 10 anos lendo e escrevendo bem, dominando as operações matemáticas esperadas para essa idade. Esse é o padrão que eu quero para todos, que quero universalizado porque é o direito de todo mundo.
A questão é que, para eu poder assegurar esse direito para a criança que quando nasceu ganhou um livrinho para brincar na banheira, para a criança que antes de saber ler ouvia história na cama todo dia, que ganhava livros quando fazia aniversário – e esses livrinhos eram lidos – para a criança que montou uma pequena biblioteca aos 6, 7 anos e que tem na variante urbana e culta da língua a sua língua materna, aí a gente tem uma conversa. Essa criança, quando se aproximar da língua escrita, já desenvolveu todo um conjunto de competências leitoras e já desenvolveu a relação com a leitura que será valorizada na escola. Essa criança é aquele bom nadador que nada a favor da maré. Ora, se eu for ensinar leitura imaginando que vou encontrar essa criança na minha frente, o que vai acontecer quando eu tiver na minha sala de aula o filho de gente que tem pouco material escrito em casa, cuja cultura é praticamente oral, que não tem a leitura literária como prática corrente, que fala uma variante popular e discriminada da língua? Se a escola tratar essas duas crianças de maneira igual, e ainda mais valorizando aquela primeira, ela simplesmente não vai conseguir assegurar a todos o mesmo direito.
A oferta educacional que pressupõe as famílias mais letradas não é um padrão mais alto: é apenas um padrão restritivo, feito para alguns e não para todos. O importante é construir estratégias, práticas, dispositivos institucionais, que permitam que as famílias mais distantes da cultura a ser transmitida pela escola possam ter acesso a essa cultura, que possam ser bons leitores, escritores, que possam ler a Zero Hora e avaliá-lo criticamente.
Esse é o ponto. O padrão deve ser altíssimo para todos, deve ser definido como direito. Só que para assegurar esse padrão alto para todos os grupos não dá para replicar para todos os grupos a escola que só vai funcionar bem para poucos, os grupos sociais que tem as necessidades econômicas asseguradas e que são mais escolarizados.
Hoje a gente tem oferta pior nas regiões concentradoras de pobreza, uma escola que é o retrato precário da escola voltada aos grupos sociais mais escolarizados. A gente tem o mesmo modelo de escola, porém mais precário, para a população que precisa de melhor oferta melhor e mais adequada às suas necessidades. Ao contrário disso, precisamos de discriminação positiva. A diferenciação da oferta educacional para quem está em posição social diferente deve existir para assegurar igualdade de direitos.
E as impossibilidades continuam, bom exemplo disso é a inacessível UNICAMP com processos seletivos (cada vez mais seletivos) para mestrado e doutorado