Ele percorreu dezenas de países e quase todo o país visitando escolas e secretarias de Educação, entrando em comunidades, realizando palestras, orientando professores, instaurando sistemas restaurativos na Justiça. Pôs frente a frente infratores e vítimas no Brasil, e grupos bélicos arquirrivais na África. Sua vida é feita de diminuir distâncias, abraçar problemas e fazer conexões, provando aquilo que às vezes parece esquecido nos tempos atuais: o diálogo. Ele é Dominic Barter, inglês de 49 anos que desde 1995 atua no Brasil com círculos restaurativos e desde 2003 promove a comunicação não-violenta (CNV), ferramenta desenvolvida pelo psicólogo norte-americano Marshall Rosenberg para substituir a violência e lidar de um jeito diferente com conflitos.
Em agosto de 2017, recém-retornado ao Rio de Janeiro, onde reside, de uma temporada nos Estados Unidos e antes de iniciar novos projetos, o consultor em CNV conversou com a reportagem por Skype. Na conversa, explicou como tem difundido a paz pelo mundo, a experiência no projeto realizado com sua parceria no Espaço Beta, escola de inteligência relacional na capital fluminense, e sobre as dificuldades que enfrenta como pai de uma adolescente. Confira abaixo, na íntegra, como foi o bate-papo:
A CNV pode ajudar a resolver ou a reduzir conflitos dentro da escola?
A comunicação não-violenta não pode evitar e não iria querer que os conflitos fossem evitados porque conflitos é um elemento essencial de qualquer relação que vale a pena. Exatamente porque eu me importo com a pessoa ou com o assunto que conflito surge. Conflito serve como uma função social porque ele dá um retorno para as pessoas envolvidas ou conectadas em qualquer relacionamento que alguma coisa nesse acordo tem mudado, portanto, conflito serve como mecanismo de feedback nos avisando que nós precisamos atualizar algo sobre nosso relacionamento. Assim, em uma abordagem não-violenta, ela ajuda a gente a reconhecer conflito não como algo negativo, vergonhoso ou algo a ser evitado, reprimido ou ignorado, mas exatamente como algo que vem como convite para dialogar. A razão pela qual conflito tem uma assessoria de imprensa tão ruim e todo mundo acha que é alguma coisa negativa é porque essa tentativa de reprimir, ignorar ou marginalizar o conflito é isso que conecta conflito a momentos de violência. Se você imaginar que nós estamos tendo uma conversa e nós dois não estamos nos entendendo, com o tempo você vai observar que um de nós vai aumentar o volume da voz e alguém assistindo poderia pensar: “mas que estranho, eles não estão mais longe um do outro do que antes, eles estão na mesma distância”. Por qual motivo o volume de voz que eu estou utilizando agora não é mais suficiente? Isso é porque eu tenho a impressão de que é quando você não me entende que é como se você estivesse longe de mim. Então imagina se eu me afasto de você, que é o que acontece quando a gente tenta marginalizar ou acalmar entre aspas o conflito, a outra pessoa aumenta ainda mais o volume com que fala para suprir essa distância e se a distância é estabelecida e se torna sistemática, vai chegar um momento em que gritar não vai ser suficiente. Aí eu uso violência, porque apesar de ter um custo altíssimo, nos primeiros dois segundos violência funciona muito bem, ou seja, chama a atenção da pessoa com quem eu estou falando, torna-se temporariamente impossível ignorar que eu existo. Então, exatamente porque eu quero diminuir a violência que eu não ignoro nem resolvo conflito, eu procuro compreender e dialogar com a mensagem que conflito tem. Uma abordagem não-violenta dentro de uma parceria tão íntima, complexa e importante como uma escola reconhece e valoriza conflito como parte do nosso relacionamento e sobre como a escola pode criar espaços em que é seguro falar a verdade quando o conflito se torna doloroso.
Conflito ainda é visto como algo negativo, um problema a ser evitado?
Eu arriscaria dizer que a lógica do país inteiro é a de tentar evitar o conflito. Por causa disso é muito difícil falar de democracia porque se você tem medo de conflito você não vai gostar de democracia, apesar do seu posicionamento político ser a favor, sua experiência pessoal de democracia vai ser muito incômoda porque democracia convida ao conflito, a democracia gosta de conflito, debates, diferenças de opinião e pra isso preciso ter a capacidade de discordar de você de uma forma que aumenta a nossa conexão e não fragiliza. Se a gente não aprende isso na escola, vai ser muito difícil a gente aprender isso fora, por causa disso é tão importante que a escola reconheça conflito não simplesmente como uma questão disciplinar, mas como uma questão pedagógica, como uma questão cívica, de desenvolvimento de cidadão, capacidade de se diferenciar do outro, de discordar de você de uma forma que reforça o senso que a gente tem em comum. Se os adultos não estão fazendo, os jovens vão ter muita dificuldade de fazer.
A comunicação não-violenta trabalha habilidades sócio-emocionais. Qual a importância de praticá-las?
Se a gente vai entrar inteligentemente em um conflito, vamos precisar recuperar a capacidade de ouvir e de articular. Essas capacidades hoje infelizmente precisam de um nome especial, como habilidades sócio-emocionais. Mas gosto de dizer que não são estranhas, elas devem ser tão básicos como pegar um ônibus ou comprar um pão na padaria.
“Exatamente porque eu quero diminuir a violência que eu não ignoro nem resolvo conflito, eu procuro compreender e dialogar com a mensagem que ele tem”
A educação atual e a escola não valorizam essas habilidades?
Eu queria ser um pouquinho mais generoso e dizer que talvez grande parte das pessoas não conhece. Se eles conhecessem, aí a gente iria saber se eles valorizam ou não. Eu não posso dizer que as pessoas não valorizam alguma coisa que elas não sabem fazer e nunca viram alguém fazendo e não encontram quando abrem um livro ou quando fazem a formação para entrar no Magistério. Se essas ideias não são apresentadas, então não me surpreende que as pessoas não façam. Nesse sentido, o Brasil tem, por mais estranho que pareça, uma certa vantagem, como teve vantagem ter um sistema de telefonia fixa tão fragilizado e problemático que o pulo para o celular foi muito mais rápido e compreensivo do que em muitos outros países. Onde eu encontro secretarias de Educação conhecendo a importância de lidar com conflito de outra forma, eu enxergo não só um projeto periférico de alguém fazendo porque acha que tem de fazer, eu encontro muito empenho e seriedade de pessoas querendo que essas mudanças se tornem sistemáticas. A dificuldade é que os seres humanos que vão fazer isso precisam passar por um processo de mudança muito significativa porque quando esses professores eram alunos não tinha nada disso. Então, eles estão fazendo alguma coisa que nunca experimentaram.
Vantagem por quê?
Porque quando você levanta esse assunto nas esferas públicas, a seriedade com que você é recebido é muito significativa do que em outros lugares. E isso acontece porque aqui as pessoas estão sofrendo mais e porque muitos deles sempre teriam apoiado essa proposta, só que eles não conheciam. Eu acabei de voltar dos Estados Unidos, eu trabalhei 3 dias em um Estado, 3 dias em outro estado, só com escolas. Trabalhei com parte política, Conselho Tutelar, escolas, visitei várias escolas. E lá você tem um conhecimento maior sobre esse assunto e as pessoas interessadas nesse assunto tendem a ser colocadas em um gueto, como professores diferenciados ou escolas com foco específico, e em termos de mudar o sistema de educação como um todo isso é uma desvantagem. No Brasil, quando as pessoas se interessam, elas se interessam em grande escola e por causa disso eu falo que tem uma certa vantagem.
Quem machuca mais ao falar dentro de uma escola? Aluno, professor, direção, pais?
Eu acho que na atual situação de defasagem geral da escola pública, tudo está machucando todos. Da experiência que eu tenho, eu não vejo ninguém que esteja bem.
Fotos: Priscila Rodrigues, Caixa de Assistência dos Advogados da OAB/RS/ Divulgação
A violência dentro da escola tem alguma peculiaridade ou é a mesma violência praticada em qualquer outro espaço de interação social?
O que me impressiona é que a violência que eu vejo nas escolas do Brasil em 2017 é a mesma que eu e meus amigos experimentamos e cometemos há 5 mil quilômetros daqui há 40 anos. E eu acho isso notável porque sugere que os jovens não inventam os meios que eles expressam os seus conflitos, eles aprendem e infelizmente só tem uma fonte de aprendizagem: da gente. As estratégias são diferentes nos ambientes sociais diferentes, mas a lógica dessas estratégias não me parecem ser muito diferentes. A lógica tem a ver com a tentativa de identificar a coisa errada e de punir essa pessoa para corrigir esse comportamento. E isso eles estão aprendendo em casa, na rua, na própria escola porque essa é a forma que a gente usa também, do STF até às brigas na mesa da cozinha. Usamos a mesma lógica pra responder um comportamento que a gente não gosta e essa lógica segue uma orientação na base da dominação. A não-violência não vem com técnicas pra tentar aliviar o estresse e os problemas que essa lógica cria, ela apresenta uma outra lógica, uma lógica de parceria em que a gente enxerga o conflito de uma forma diferente e por olhar de uma forma diferente a gente age de outro jeito.
E isso pode ser ensinado dentro da própria casa?
Bebês, crianças e jovens aprendem o que a gente faz e não o que a gente fala, apesar de todas as nossas tentativas (risos). Eu realmente tenho testado muito isso na minha vida e rezo muito que minha filha aprenda o que eu falo e não faço, mas não adianta. E como professor de Ensino Fundamental e do Ensino Médio e agora como diretor de uma escola e em todas as consultorias que eu tenho feito em secretarias de Educação no Brasil e no exterior é impressionante como essa regra se mantém. Eu não iria usar a palavra ensinar propriamente dito, pois o que eu quero é que eles tenham referências firmes para que possam ver que é possível crescer e não ter de abrir mão de suas capacidade e de suas dignidades, da sua capacidade de identificar o que você precisa e negociar como conseguir o que você precisa em harmonia com os outros. Uma das muitas queixas que eu recebo dos jovens e particularmente adolescentes é que os adultos na escola têm medo de conflito e eles me apresentam isso como sendo um problema sério para eles, e enquanto eles explicam como é que eles lidam com esse desafio eu lembro muito bem da minha adolescência porque na minha escola a gente falava: “você e eu eu, lá fora, três e meia”. E a gente falava assim rapidinho para nenhum adulto pegar. Você e eu é o elenco necessário para esse drama fluir. Lá fora quer dizer fora do território sobre o qual os adultos têm domínio e três e meia quer dizer fora do horário que os adultos têm domínio. Ou seja, eles têm um enorme entendimento sobre o que é necessário para criar as condições para que esse conflito seja transformado em mudança. O problema não é a capacidade deles de planejar logisticamente, o problema é a tentativa deles de copiar a gente quando eles se encontram lá fora às três e meia. Então, o que a não-violência faz é reconhecer a inteligência que já existe dentro da escola. Eu chamo isso da chama restaurativa porque tem um foguinho ainda existente em todas as escolas que eu já visitei. A questão é como identificar essa intuição sobre como dialogar e alimentar para que ela se torne de novo um fogo que fica no centro da vida comunitária nutrindo e dando luz. Porque isso é conflito, é uma força elementar como o fogo que transforma, é muito poderoso, mas que se você não sabe lidar, queima.
E é ainda mais necessário em culturas repressoras e dominadoras.
Se a gente vê o conflito como o fogo, então a gente entende que os sentimentos são a fumaça. Eles são aquilo que indica a presença de alguma coisa que importa para todos os envolvidos. O conflito tem no âmago aquilo que a gente valoriza juntos e aquilo que está em jogo. A gente entende quando conflito surge que há a possibilidade de a gente não compartilhar os mesmos princípios e a briga é a tentativa de descobrir se a gente compartilha ou não. Por exemplo, se estamos andando no corredor da escola, nós dois somos alunos e você fala alguma coisa sobre a minha mãe que eu não gosto. Por um momento, eu fico em dúvida sobre quem é você porque eu estou focando a atenção naquilo que você fez ou falou, então a briga é a tentativa de descobrir se você e eu somos realmente semelhantes. A gente parece igual, temos dois braços, duas pernas e tudo o mais, mas quando você fala isso, eu começo a duvidar. Do mesmo modo acontece quando a gente entra no Facebook e o nosso colega que a gente acha maravilhoso de repente está postando opinião política oposta da nossa. Nossa! Acontece a mesma coisa. Ou o professor que ama o alunos, que ama o que faz, de repente vê o aluno se comportando de uma forma inadmissível ou horrível, mais uma vez tem esse momento. A escola é cheia de conflitos porque a escola é cheia de pessoas que se amam e tratam de um assunto que está entre os mais importantes que existe. O que a comunicação não-violenta nos encoraja a fazer é distinguir a pessoa daquilo que a pessoa fala ou faz.
“Uma abordagem não-violenta dentro de uma parceria tão íntima, complexa e importante como a escola reconhece e valoriza conflito como parte dos relacionamentos”
Como começar na escola?
A primeira coisa que a escola pode fazer em termos de ensinar entre aspas a CNV é criar as condições culturais para que exista espaços seguros em que é possível brigar e depois investigar com os jovens o que está envolvido no diálogo. Você pode fazer isso facilmente na História, na Matemática, na Biologia, nos Esportes. Quase todas as matérias abrem uma brecha para você usar as questões de convivência como um projeto e é assim que a gente vê as escolas que realmente abraçam uma atitude diferenciada. Eles começam a pensar conflito entre nós em um espaço específico para isso, como um refeitório ou um quarto. Afinal, todo dia a gente precisa comer e dormir, não importa a religião, política, idade, jeito de andar, cor de pele. As escolas que estão avançando nisso enxergam que precisam de um lugar dedicado para isso, para cuidar disso, como uma cozinha de conflito, um quarto de diálogo. Em vez de dormir, vocês se entendem. Algumas escolas têm isso e eles aproveitam todas as oportunidades para mostrar que diálogo é algo factível, embora a cultura tenha esquecido, mas que é possível na prática.
Seriam espaços de mediação de conflito?
Sim. Dentro desse espaço você pode aproveitar com inúmeras e diferentes práticas ou você pode desenvolver as suas próprias práticas. Eu costumo encorajar as escolas a desenvolver as suas próprias práticas porque o trabalho de investigação disso além de ser divertido é pedagogicamente muito rico mas no final das contas é mais sustentável porque aquilo que eu desenvolvi com você a gente muda se a gente não gosta mais. Eu gosto que as escolas tenham não somente mediação, mas que tenham também práticas restaurativas porque mediação é extremamente flexível para pequenos grupos, mas às vezes nas escolas você precisa juntar 20, 30 pessoas para responder certo ocorrido e aí o círculo restaurativo é mais eficaz.
E como funcionam os círculos?
Pode ser de quatro ao maior círculo que a gente já teve em uma escola era de 160 pessoas. A gente não tinha nem sala que comportasse tanta gente e todos tiveram de sentar no pátio porque a roda era muito grande. Inicialmente um círculo restaurativo precisa de um contexto sistêmico, de alguns acordos, para poder funcionar, se não ele cai em um dos grandes desafios de conflito na escola que é de que conflito precisa poder ser compartilhado para ser respondido de forma eficaz. Até agora, a maioria de tentativas de trabalhar conflito na escola acabam pedindo que o professor adote mais uma profissão além das 30 que já tem, além de psicólogo, sociólogo, mãe, enfermeira, tudo isso junto. Agora tem de ser mediador de conflito. E isso não é entendido porque na sala de aula tem necessariamente e saudavelmente um desequilíbrio na distribuição de poder. Quando conflito surge, ele é experimentado pelo professor como uma ameaça à aula com toda a razão. Não que ela seja realmente uma ameaça, mas é como comer no quarto, não tem sentido, você sai do quarto e vai para a cozinha para comer. Então a escola precisa de um sistema que permita que conflito, quando surja na sala de aula, tenha um lugar para ir e se preserve a sala de aula, que é um espaço dedicado à aprendizagem. Quando você tem isso, o círculo restaurativo reconhece que conflito tem três partes e não duas: o que cometeu o ato, o que levou o impacto principal e o terceiro papel que nossos procedimentos punitivos atuais não reconhecem, que é a comunidade do conflito. Em uma escola, qualquer coisa que acontece, é imediatamente conhecida por todos. A rede de fofocas funciona maravilhosamente bem e com razão porque é necessário saber o que está acontecendo. Então, essas são as pessoas indiretamente impactadas. Quando dois amigos brigam, os amigos dos amigos sofrem as consequências disso e muitas vezes eles têm muita inteligência para ajudar. Então, esses três grupos ou indivíduos precisam ser identificados e cada um deles precisa ser ouvido pra descobrir o que aconteceu, qual o significado que tem para as pessoas envolvidas e o que eles gostariam de fazer em seguida. Eu chamo isso de pré-círculo. Em uma escola ele pode ser muito rápido, porque as crianças entendem intuitivamente esses processos muito mais rápido do que os adultos. Talvez só se precise de 10 a 15 minutos. Depois disso, a gente junta todo mundo em um círculo e ali a pessoa usa perguntas para interromper a tendência normal que a gente chama de diálogo: eu falo, você fala, ninguém escuta. Então as perguntas do facilitador interrompem essa tendência checando com a pessoa que acabou de receber a fala da outra, até que a pessoa que falou esteja satisfeita que, sim, foi ouvida. E a gente passa pelo círculo fazendo isso com os envolvidos até que todo mundo prove que é capaz de ouvir o outro, isso a gente chama de compreensão mútua, é a primeira fase dos três fases do círculo. Na segunda fase a gente olha para aquilo que aconteceu originalmente. Então a gente pergunta o que você estava procurando quando você fez o que você fez? E a gente começa isso com o autor do ato em questão, mas a gente faz essa pergunta para todos porque muitas vezes os conflitos são mútuos. A pessoa que a gente acha que é o ofensor, é às vezes o ofendido.
Como assim?
Eu estava em uma época trabalhando para um juiz, saindo da Fase, em Porto Alegre, uns anos atrás, quando um jovem falou para mim: “vem cá, eu quero que você saiba que é só o juiz que diz que eu sou o ofensor. Se a Polícia tivesse chegado cinco minutos antes, eu estaria lá fora e o outro estaria aqui dentro. Eu estava fazendo justiça quando a Polícia me interrompeu e quando eu sair daqui eu vou completar a tarefa”. Eu estava trabalhando na época para aquele juiz, eu sabia de quem ele estava falando e isso me chocou muito porque eu vi que a lógica dos adolescentes é isenta, que o processo na Justiça formal não dá conta dessa complexidade. Então na prática restaurativa a gente dá conta disso, todo mundo responde também a essa pergunta: o que você estava procurando quando você fez o que você fez? E no final quando todos se entendem sobre isso a gente fica avaliando aquilo que eles querem fazer em seguida, quais ações concretas se quer tomar e a gente faz um plano de ações e checamos em um pós-circulo se os envolvidos estão satisfeitos com o resultado. Montar um sistema restaurativo na escola é muito além de ter uma intenção ou desejo que as coisas melhores, é um comprometimento com procedimentos muito firmes e visíveis para todos de que nessa escola a gente lida com conflito de outro jeito.
E essa prática é possível em todas as escolas?
Não sei dizer se é ou não, só posso dizer que até agora eu nunca encontrei uma escola que não conseguisse.
Há iniciativas em escolas que escolhem alunos como mediadores para ajudar a resolver conflitos, tirando do professor essa função. Isso é um avanço?
Sim, porém a única preocupação é que quando a gente identifica apenas uma pessoa corremos o risco de seguir o mesmo molde de um juiz. Então, vejo muitos melhores resultados do ambiente escolar quando tem um sistema em vez de uma pessoa. E não é só uma ideia, há evidências e estatísticas claramente mostrando que quando tem um sistema restaurativo, o número de dias que os professores tiram de licença médica diminuem, o rendimento acadêmico aumenta. Eles pressupõem que o cérebro não aprende quando está com medo. Se você consegue criar um ambiente na escola em que a punição não é utilizada, o ambiente se torna mais seguro e o rendimento acadêmico dos alunos aumenta.
Quem realiza os círculos deve ter formação específica? São instruídos por quem?
Por pessoas da mesma escola. O sistema não é da instituição escola, é da comunidade escolar e isso é importante porque quando eu participo de um círculo eu não sou aluno, eu não sou diretor, eu não sou professor, eu sou membro da comunidade escolar. Porque conflito não acontece entre professor e aluno, conflito acontece entre gente. É uma das razões porque conflito é tão mal visto dentro da escola, pois as pessoas com toda a razão reconhecem: “mas ele está tirando a minha autoridade”. E é mesmo! Por causa disso, nós vamos te dar um espaço próprio para cuidar disso porque eu concordo que tirar a sua autoridade dentro da sala de aula é ruim.
O que educadores têm de saber quanto a educar ensinando as crianças a se expressarem e a enxergarem o outro apesar das palavras e ações?
Que a suposta intenção da escola afixada naquele papelzinho dentro da porta em que está escrita alguma coisa parecida com nossa intenção é criar jovens com consciência critica, criativos e prontos para entrar e transformar o mundo e blá blá blá, que isso é incompatível com uma lógica em que a gente rotula e desumaniza um do outro. Seja nós mesmos, nossos colegas ou nossos alunos no nosso jeito de se comportar no dia a dia. E ainda que a missão pedagógica do professor começa a partir do momento em que sai de casa e só termina quando volta, com cada ação, cada fala, cada atitude. Isso é uma notícia dura para muitos professores porque ela envolve um luto significativo porque a gente precisa olhar e ver que a nossa educação não era assim, nossa criação não era assim. Se a gente for preciso com o significado grego da palavra escola, que quer dizer lugar em que nenhuma lei é imposta e todas as regras são suspensas, então a gente não vai e nunca foi à escola, a gente nunca viu a escola. Escola é, então, algo ainda a ser criado. E a base dela tem de ser um ambiente em que bem-vinda a verdade que contesta, bem-vinda a dúvida que investiga e é contraproducente um mandado à ordem, à exigência, à ameaça e a resposta porque é assim, porque é na prova! Então, não é fácil, e o magistério recebe um apoio completamente inadequado à importância, à seriedade e à complexidade da profissão que a gente tem e ainda menos apropriado considerando as mudanças que a gente vai ter de fazer se a gente quer preservar a escola como um lugar privilegiado dentro da sociedade.
Nas consultorias e capacitações com professores, o que ensina e orienta?
A primeira coisa que eu sugiro quando eu trabalho com professores é montar um sistema de apoio para os professores porque eu lembro quando era professor e consultores chegaram na escola para explicar coisas novas que a gente deveria estar fazendo. Estava todo mundo lá sentado e olhando para aquelas figuras e pensando: “você não sabe absolutamente nada sobre a minha vida, como é que você vai dizer para mim como é que eu devo agir”. E isso com o tempo foi sendo reconhecido exatamente com o tipo de atitude defensiva que as pessoas têm quando elas estão subnutridas. Então eu olho para os professores e olho para mim como professor como alguém que precisa tomar um certo grau de autonomia acerca do apoio que eu preciso para poder fazer a minha profissão que é muito, muito, muito maior do que eu imaginei. O sistema de apoio é a base e aí a próxima coisa que eu faço é a escuta. Eu escuto dias, semanas, meses, se necessário, antes de abrir a minha boca e fazer qualquer sugestão para os professores sobre o que fazer. Particularmente sobre conflito e as coisas que são mais doídas para a gente lidar. Eu quero que qualquer procedimento desenvolvido naquela escola seja desenvolvido à base do conhecimento que ele já tem e não à base da ideia de alguém que acha que seria legal mudar tudo e isso eu posso fazer na minha escola. Mas na escola deles, quem vive com o que acontece e as consequências são eles, então o meu papel é facilitar a construir a escola que eles querem. Mas se eles me perguntem, claro, eu faço isso há duas décadas, eu tenho milhares de exemplos, eu posso dizer aquilo que funciona melhor.
Se os professores estão subnutridos e essas habilidades são mal trabalhadas na escola, em casa também. Ansiosos e exigidos em exercer os seus papéis, equilibrar as suas tarefas, os pais também enfrentam dificuldades. Esses tropeços começam desde muito cedo, desde os primeiros minutos de vida. É possível mudar a lógica nas relações mais íntimas?
Exatamente. E a pergunta que eu me faço como pai quais são os motivos que eu quero que a minha filha tenha de fazer as coisas que eu gostaria que ela fizesse? Eu quero que ela faça o que eu estou sugerindo por obrigação, por medo, por ameaça ou por um suposto dever? Ou eu quero que ela faça porque ela reconhece que lhe serve bem a vida? Esse é o significado da palavra não-violência, de servir bem à vida. Então, se é isso que eu quero, diálogo é essencial e quando conflito surge em casa, a empatia é essencial. Porque é empatia que possibilita a gente redescobrir a diferença entre a pessoa que você é e as palavras e as ações que você acabou de fazer. Eu posso discordar muito do que você fala ou do que você faz, mas eu não quero me desconectar de você. Quem cresce em uma família em que isso é normal, é outro aluno quando chega à escola e outro cidadão quando ganha a sua autonomia. A gente teve uma experiência interessante na nossa escola, que é muito nova aqui no Rio, ela tem só dois anos. E pela primeira vez uma aluna saiu depois de passar um ano com a geente e foi para uma escola normal. Ela já tinha de combinado de fazer isso, de fazer uma troca, só que era em outro país. E um aluno dinamarquês veio para cá, eles trocaram de famílias. E o primeiro dia ela estava em contato conosco pelo WhatsApp meio em pânico: todo mundo enfileirado e a gente dando apoio à distância. E certa hora ela estava em uma aula e levantou para ir ao banheiro, esqueceu completamente como é que funciona em uma sala de aula normal em que o aluno pede permissão. O professor perguntou para ela o que ela estava fazendo, e ela respondeu, e o professor disse que não deu permissão. E ela disse nas palavras dela: “eu esqueci como é que é estar em um ambiente em que o pressuposto é a desconfiança. Só agora eu vejo que com vocês o ano todo era na base da confiança e eu era outra pessoa por causa disso. E se o outro desconfia de mim antes, eu vou ser outra pessoa por causa disso”. Eu fiquei preocupado me questionando se não estamos criando adultos que um dia serão insuportáveis? (risos) E o que a ente viu nos dias e semanas seguintes é que graças a Deus, não, porque ela tinha resiliência de preservar a dignidade dela mesmo estando em um sistema assim, porque ela podia empaticamente imaginar o que estava passando na cabeça de um professor que está tentando lidar com 40 alunos dentro da sala de aula. Enquanto eles estão com a gente (na nossa escola), esse número nunca passa de dez. Então, ela acabou de voltar, mas tudo que eu ouvi e conversei com a mãe dela eu percebi que ela fortaleceu uma capacidade que permitiu que ela não baixasse a cabeça de novo, mas não precisava brigar.
“Montar um sistema restaurativo na escola é muito além de ter uma intenção ou desejo que as coisas melhores, é um comprometimento com procedimentos firmes e visíveis que nessa escola a gente lida de outro jeito”
Como a questão da comunicação não-violenta é abordada e conduzida no Espaço Beta? Já há avanços observados?
É tudo muito, muito provisório. Por ser uma proposta de educação tão diferente daquela que a gente vê em outros lugares, o desenvolvimento dessa mudança leva mais tempo. Apesar de ser lento, o que a gente viu primeiro é que conflito sumiu, e conflito sumiu porque a qualidade de escuta era o nosso principal, foi a base de tudo, e não uma coisa muito legal que a gente fazia de vez em quando. Começávamos todos os dias checando de verdade como as pessoas estavam. Qualquer pessoa que conhece uma escola sabe que a maioria dos conflitos que se dão na escola não são da escola, eles são importados. Então, sabendo isso, a gente teve tempo suficiente para descobrir o que estava acontecendo e eu não vou dizer por ser pai de um adolescente e ter passado muito tempo com adolescentes em outras escolas que foi um choque para mim descobrir o quão desamparados e preocupados os adolescentes estão de herdar um mundo em que a gente está atualmente. Apesar de toda a minha experiência prévia eu não sabia que era tanto. Eu não tinha imaginado o quanto eles temem, o quão baixa esperança eles têm, o quanto a lógica de mercado e a busca de dinheiro tem tomado conta. Eles se dizem muito politizados porque eles são feministas, anti-racistas e tudo o mais, e isso é importantíssimo. Mas eles não sabem que são focos específicos, eles não têm uma visão política maior. A visão política maior deles é tentar conseguir um salário bom. Então, eles precisavam de muita escuta. Inicialmente, a gente ficou preocupado e tivemos reuniões super sérias falando sobre o problema da ausência de conflito porque a gente achou que isso acontecia porque eles não tinham aderido à escola, porque não se importavam com a gente, mas depois conversando com eles a gente percebeu que isso acontecia porque o nível de cuidado era maior. E a partir do momento em que começaram a entrar em projetos mais complexos, voltou o conflito e na volta do conflito foi necessário sentar com eles e perguntar como poderíamos aplicar aquilo que a gente já sabe. E juntos com eles a gente começou a desenvolver a nossa própria forma de resolver conflito e para eles isso foi gostoso pedagogicamente.
O brasileiro é muito violento?
Eu questiono o auto-diagnóstico que o brasileiro tem que aqui tem mais violência do que em outros lugares. É evidente que aqui tem muita violência externa e muita violência sistêmica na sociedade. E você tem muitos exemplos de conflitos interpessoal que envolve violência com outra pessoa. Por exemplo, 14% de todos os assassinatos do mundo acontecem aqui, então é muito extremo. Mas se você compara com outros países, como o que eu nasci, a Inglaterra, o número de mortes é infinitamente menor se você inclui as mortes feitas por ingleses com ingleses na Inglaterra. Mas se você olha historicamente, como é que o inglês lida com a sua violência? Nossa estratégia predileta é ir para o outro lado do mundo e matar um monte de gente que não pensa como a gente. É menos violento? Eu não sei! Outro exemplo é a Suécia. Lá, o homicídio é muito menor, mas se você avalia o suicídio, os números não são tão diferentes. Então, o que eu vejo no Brasil é uma forma muito peculiar de expressar sua violência e essa peculiaridade é muito parecida com as outras colônias de Portugal. Angola não briga com vizinho? Moçambique não briga com o vizinho? Brasil é amado por todos os países do mundo. O brasileiro é simultaneamente campeão de simpatia e um dos mais violentos do mundo. Mas como assim? (Risos) Eu vejo isso até na minha família. A família da mulher que eu casei é de policiais e militares. Eles são tecnicamente assassinos, mas são pais de família adoráveis, super generosos, fazem qualquer coisa pelos outros e me receberam muito bem apesar de eu ter opiniões políticas divergentes. E a gente se ama! E isso é uma qualidade que o Brasil tem muito forte. Eu não quero alimentar a ideia de que comparativamente o brasileiro é mais violento, mas acho que a gente expressa a nossa violência de forma diferente. Agora, se tem alguma coisa que tem mudado, eu acho que todo mundo tem notado, e não só no Brasil, que nos últimos quatro, cinco anos houve alguma coisa e a nossa paciência para o diferente diminuiu drasticamente. Eu vim agora dos Estados Unidos e vi o nível de tolerância muito raso entre grupos políticos antagônicos. Eu também tenho visto alguma coisa dessa natureza no Brasil. Por exemplo, houve uma época em que todo mundo se sentia muito brasileiro. Eu estava aqui e vi quando o Ayrton Senna morreu e todo mundo parecia mexido, mesmo quem não gostava de esporte. Eu não sei se isso iria ocorrer se ele ainda estivesse vivo e morresse amanhã. Eu não sei se existe este senso de uma nação atualmente. E acho que isso não tem aumentado a violência, mas tem feito o estresse de conflito mal administrado muito mais presente para muita gente.
Por exemplo?
Ontem, eu estava jantando na casa da minha ex-mulher com ela e a minha filha. Depois de cinco minutos, a nossa filha começou a discutir com a mãe sobre um post que o tio dela havia feito no Facebook apoiando Bolsonaro e ela estava completamente revoltada porque a mãe o tratou como irmão e não como adversário político! E ela levantou da mesa e foi embora para o quarto dela emburrada e zangada com a mãe. Veja isso. Eu acho que isso é um momento muito peculiar pelo qual estamos passando.
Enxerga no mundo mais atenção a essas habilidades sócio-emocionais?
Sim, eu acho que sim. Eu acho que as pessoas estão enxergando as consequências de uma lógica de dominação e entendo que para progredir para uma outra lógica a gente precisa de visões ideológicas de futuro. Porém, precisa recuperar certas capacidades que de tão esquecidas algumas pessoas imaginam que elas nem existem mais, como a capacidade de empatizar, de escutar não só o que a pessoa está falando, mas a pessoa que está falando. As pessoas me parecem mais cientes de que a convivência não virá de graça, ela precisa ser alimentada, e as pessoas estão buscando uma qualidade de vida e um engajamento social que vai além de partidos, de manifestações e de gritaria e que cultiva um outro mundo. Ou seja, nossa relação com nossos filhos e alunos precisa mudar radicalmente porque eles já sabem que o conteúdo das aulas que a gente faz e as histórias que a gente conta para eles, metade é totalmente irrelevante para o mundo deles. A questão deles é: cadê a liderança? Cadê a demonstração de que estão levando isso a sério? Eu vejo uma consciência crescente disso por parte de alguns adultos, mas por parte de muitos jovens.
A CNV começou a se trabalhada por Marshall nos Estados Unidos a partir dos anos 1960. Nessas regiões em que essa prática iniciou, há hoje resultados concretos em função disso?
Sim. Ela é uma pesquisa em vez de uma metodologia e em vez de uma técnica. Ela possibilita que outras coisas aconteçam. Por exemplo, quando o pão sai bonito, você não pensa na qualidade do trigo que deu a liga, você não pensa na galinha que chocou o ovo que faz o bolo. Mas sem aquele ovo o bolo se desfaz. Os resultados estão por muitas partes, mas eles poucas vezes são atribuídos à comunicação não-violenta. Se fosse uma técnica, a gente teria uma longa lista das coisas maravilhosas que a CNV tem possibilitado. Em vez disso, a gente tem muitas histórias e pessoas envolvidas que sabem o quão importante o trabalho do Marshall foi naquele momento. No ano passado, eu fui chamado para uma guerra civil de 34 anos na África porque os mediadores oficiais, que são a equipe do Vaticano, um grupo extremamente capacitado que tem todos os recursos que a gente pode imaginar, estavam em um impasse. Eu entrei no lugar, religuei as conexões e fui embora, deixando espaço para esses mediadores voltem a trabalhar lá. Quando eles enxergam um acordo de paz, eu duvido muito que o meu nome apareça. E eu entendo isso. A CNV é um pouco assim. O Marshall estava na estrada 300 dias por ano durante 25 anos. Então imagina com qusntas pessoas ele sentou e conversou. Hoje, a diferença é que é muito mais rápido. Em 1995, eu era um gringo perdido aqui com 40 palavras de português, daí entrei no morro e comecei a conversar com crianças de sete, oito anos que já trabalhavam para o tráfego. No ano passado, o Conselho Nacional de Justiça lançou a resolução 225 que formaliza a Justiça Restaurativa como sendo algo que precisa estar presente em cada tribunal do país. Tem uma linha direta com isso! Na resolução deles, não tem uma página que não parafraseia ou até copia o meu primeiro Power Point que apresentei em 2004. Então, eu sei da ligação, mas eu também sei que a Justiça não vai falar que foi um gringo que não tem nem o segundo grau completo que nos ensinou a fazer isso. A CNV é meio assim não só no Brasil, mas em toda a parte do mundo.