A professora Carmen Pereira, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Bilingue para Surdos Vitória, em Canoas, teve um dos projetos selecionados para o Mapa de Boas Práticas da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho em setembro deste ano. O projeto de Carmen foi montar um jogo, chamado Soletrando Com As Mãos, para mobilizar toda a escola em torno do ensino de Libras e de português. O projeto foi destacado no site de GaúchaZH e no site da FMSS.
No conceito “Vamos Falar de Inclusão”, a Fundação entrevistou a professora no grupo do Mapa de Boas Práticas em Educação. A entrevista contou com a participação de colaboradores da Fundação e membros do grupo, que enviaram perguntas para a professora.
Confira a entrevista abaixo:
Professora Carmen, uma pergunta que deve ter ficado na cabeça de muitos dos educadores que estão nesse grupo e que leram essa matéria: o que é, de fato, o ensino bilíngue? Como funciona?
Carmen – O Ensino Bilíngue pressupõe que toda a aquisição de conhecimento é realizada em duas línguas. No caso da E.M.E.F Bilíngue Para Surdos Vitória, a aprendizagem se dá, em primeiro lugar, na LIBRAS – Língua de Sinais Brasileira e em segundo lugar na Língua Portuguesa em sua modalidade escrita.
Por que o aprendizado da Língua Portuguesa escrita é mais complicado para pessoas com deficiência auditiva?
Carmen – A principal dificuldade é o entendimento de como as crianças surdas desenvolvem a comunicação. Em muitos casos, acredita-se que elas vão se desenvolver se estiverem incluídas em turmas regulares. Mas, as pesquisas (Capovilla) já demonstraram que as crianças surdas expostas o mais cedo possível a aprendizagem da Língua de sinais obtém melhores respostas cognitivamente. É preciso frisar que na escola bilíngue para surdos as crianças surdas estão expostas desde muito cedo na interação com seus pares linguísticos.
Sempre tive interesse em saber me comunicar em libras e cheguei a aprender o alfabeto, mas não consigo desenvolver uma ideia por meio desta linguagem. Para quem não tem este conhecimento qual a dica que tu daria para se comunicar melhor com pessoas que tem esta deficiência?
Carmen – Já passei por isso que estás passando. No início, fiz todos os cursos que consegui fazer. Participava de eventos que tinham surdos e ficava olhando pra eles o tempo todo. com o tempo, fui perdendo a vergonha,interagindo, até fazer um curso de intérprete e também um curso de especialização para trabalhar com alunos surdos. Os surdos gostam muito de ensinar a sua forma de comunicação. Sempre que você estiver com algum surdo pode chegar e tentar se comunicar. A melhor forma de aprender é no diálogo com eles.
Conversando com vários professores que trabalham com crianças com deficiência auditiva, observa-se que existe uma dificuldade de encontrar a qualificação adequada para lidar com essas pessoas em sala de aula. Que leituras a senhora indicaria para um professor que quer saber mais sobre o ensino para deficientes auditivos?
Carmen – Precisamos buscar nos pesquisadores e nos professores que atuam com esses grupos de alunos para poder atendê-los em suas necessidades. Minhas principais fontes são o professor Fernando Capovilla (SP), Lodenir Karnopp( UFRGS) e Ronice Quadros ( SC), entre outros.
Por que jogos como o Soletrando Com As Mãos melhoram a aprendizagem e mobilizam mais que as aulas formais? É muito caro investir nisso?
Carmen – Acredito que os jogos mobilizam tanto os alunos e também os professores porque mexe com a nossa subjetividade. É uma brincadeira. Uma disputa recheada de ludicidade. Quem é que não gosta de aprender brincando? Numa disputa, então? Com medalhas? Além disso, não tem despesa nenhuma, além das medalhas (que também podem ser confeccionadas).
Um detalhe importante que gostaria de frisar, no caso específico do Soletrando com as Mãos, por se tratar de uma escola bilíngue para surdos, temos a preocupação de aprimorar o nosso conhecimento na LIBRAS, assim como a preocupação com a aprendizagem da Língua Portuguesa na modalidade escrita, pelos alunos.
Acreditamos que o Soletrando incentiva tanto os professores a buscar os sinais que não conhecem, quanto aos alunos em aprender as novas palavras, conforme os trimestres vão chegando e o trabalho vai sendo desenvolvido.
Além do curso de Geografia, você tem especialização em Educação Inclusiva? Se sim, qual curso fez e quando teve a ideia de seguir nesta linha?
Carmen – Tenho curso de especialização inclusiva com foco na surdez. Fiz curso na UFSM em Educação inclusiva e sempre que posso, procuro atualização na área. Também fiz curso de Intérprete, o que me ajudou a compreender melhor a Gramática da Língua de sinais. Quanto ao que me motivou a seguir essa linha de atuação, foi a chegada de uma turma de alunos surdos em um curso de Supletivo, no qual eu ministrava aulas de Geografia. Desde então, me dediquei a estudar e trabalhar com alunos surdos.
Professora, todos sabemos que o apoio da família à criança com deficiência é fundamental para o desenvolvimento de todos os aspectos ao longo da vida. Isso não é diferente com crianças com deficiência auditiva. Qual orientação daria a pais e familiares que não estão sabendo lidar com as crianças nessas condições e quais recursos ou orientações você transmitiria? Seria possível?
Carmen – A família é a base. A maior dificuldade que as crianças enfrentam é não conseguirem se comunicar com a mãe os familiares. A maioria das crianças surdas são de lares de ouvintes. A família (principalmente, os pais) precisa aprender a Língua de Sinais o mais cedo possível. É assim e somente assim, que a criança surda poderá se desenvolver plenamente, sem diferença alguma com seus irmãos ouvintes, desde que esteja matriculada em uma escola bilíngue para surdos, é claro. Lembrando que toda a escola de surdos oferece curso de LIBRAS gratuito aos familiares de surdos.
Muito legal sua iniciativa e ver sua realização ao realizar este trabalho! Uma curiosidade: na chegada de novos alunos surdos, como você enfrentou este desafios, os medos, angústias e o desafio de lidar com a nova turma?
Lembro como se fosse ontem. Eram turmas enormes de adultos (supletivo). Quando os surdos chegaram eu fiquei muito preocupada. Nos disseram que daria para agir normalmente, bastando apenas ter o cuidado de falar sempre virados de frente para eles. Que nada! A estrutura linguística de uma língua é totalmente diferente de outra. Como falar em Língua Portuguesa e explicar ao mesmo tempo para eles? São duas línguas distintas. Passei a usar mais recursos visuais (já gostava disso, pois trabalhava com Geografia). Depois chegou uma intérprete e melhorou um pouco. A presença da intérprete melhorou, mas não resolveu. Eu queria explicar os conceitos pra os meus alunos surdos (mas eu não conseguia) ,precisava da intermediação da intérprete. Foi um exercício de humildade. Depois de um tempo, já com uma certa base de LIBRAS, eu mesma fui fazer um curso de intérprete.
Na entrevista para o site de GaúchaZH, a senhora comentou que “Na língua de sinais, as regras gramaticais são espaciais, diferente do português formal. Para eles, a língua é visual”. Como funcionam essas “regras espaciais”?
Carmen – A pesquisadora Lodenir Karnopp discorre sobre o tema em seu livro: A Gramática da Língua de Sinais. Assim, como usamos regras gramaticais, a LIBRAS usa parâmetros visuais: existe um ponto de articulação pra realizar o sinal, um movimento preciso, direção, intensidade. além disso, a expressão facial vai determinar se a expressão é interrogativa, afirmativa, negação ou exclamativa! é muito interessante!
Professora, o que você diria para um(a) professor (a) que está lidando com estudantes com deficiência em sala de aula e, além das dificuldades naturais, está encarando o preconceito dos demais estudantes?
Carmen – Passamos por isso diariamente. Eu diria aos colegas, não desistam. Busquem formas de trabalhar valores humanos. Exemplos de vida. Vídeos. Histórias. Tragam depoimentos para a sala de aula. Sejam modelo. Nós também precisamos rever nossos conceitos. Somos fruto de nossa época. Nosso ambiente familiar. Nossa comunidade. Há muito o que avançar, ainda.
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