*por Jorge Terra, procurador do Estado do Rio Grande do Sul e jurado do Prêmio RBS de Educação.
Há muito se escreve, debate, brada, lê sobre a obrigatoriedade de tratar das histórias e culturas negra e indígena no ambiente escolar. Há quatorze anos foi instituído o artigo 26-A da lei federal n. 10.639/2003, que torna obrigatório o estudo das culturas afro-brasileira e indígena – e há nove anos a lei federal n. 11.645/2008 definiu o conteúdo programático. Quanto mais o tempo passa, mais nos distanciamos do que está legalmente determinado. Sim, uma vez que há manifestações dissociadas da lei e do que dela se pode esperar, é importante conversar sobre algumas obviedades – ou quase obviedades.
A primeira pergunta ou investigação a fazer diz com o fato de ainda nos referirmos exclusivamente à lei 10.639/2003. Sim, quando uma lei altera o código penal ou o código civil, não é costume a ela se reportar, mas sim ao código – o que, sem dúvida, confere maior relevo à matéria. Se dizemos que “agora o Código determina que…”, não haveria razão para não dizermos “agora a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional determina que…”. Na medida em que insisto que a lei número 10.639/2003 merece atenção e nada refiro sobre a lei federal 11.645/2008, estaria eu também, de alguma forma, discriminando a cultura e a história indígena ou, hierarquizando as culturas e as histórias, colocando-a em um plano inferior às outras duas que também formaram o povo brasileiro?
A norma dispõe que a obrigatoriedade se dará nos estabelecimentos de ensino públicos e privados e que será necessária alteração ou adequação do conteúdo programático dos níveis fundamental e médio. Se é assim, não há razão para, insistentemente, vermos manifestações a favor do cumprimento da norma que se limitam a examinar o papel do professor. A norma tem como destinatário principal o gestor em educação e esse, ao contrário do que já se viu e ouviu, não pode se escudar em suposta resistência do professor.
Em síntese, cumprir a lei é adequar a documentação da escola – sobretudo o plano político-pedagógico, capacitar os professores e criar e cumprir um cronograma de implantação. Portanto, realizar uma roda de capoeira, uma aula sobre orixás ou sobre os grafismos de alguma etnia indígena pode até revelar boa vontade, mas não é cumprir a lei. Aliás, bom se dizer que a expressão “obrigatório” afasta a possibilidade de discricionariedade ou de facultatividade. Ademais, não se há de esquecer que crianças e adolescentes, em decorrência do contido no artigo 227 da Constituição Federal, devem ser tratados com absoluta prioridade(em reforço, repito: absoluta prioridade).
É possível que consideres que a norma extraível do artigo 26-A da LDBEN é fundamental para a construção de uma sociedade justa e democrática (ainda mais se leste o artigo 27, I da LDBEN e se sabes que as histórias e culturas indígenas e afrobrasileiras devem ser tratadas em toda a extensão do currículo e não apenas nas três disciplinas preferenciais). Nesse sentido, então, posso acreditar que já foste em algum dos locais a seguir elencados para que seja cumprida a lei pela mantenedora da escola privada do seu filho, pelo seu Estado ou pelo seu Município(sim, porque sabes que por maior que seja o número de acessos em seu perfil do facebook ou de pessoas que leiam seu artigo, mister que sejam tomadas outras medidas em paralelo): Defensorias-Públicas, Tribunais de Contas, Comissões de Direitos Humanos da OAB. Ministérios Públicos e Ministérios Públicos de Contas.
Aqui cabe mais uma obviedade: o Ministério da Educação também está em dívida, pois não promoveu a adequação das graduações, permitindo que profissionais cheguem ao mercado sem a condição técnica de dar conta das exigências legais. E, nesse longo tempo, tem se restringido a custear a produção de materiais, de eventos e de cursos, o que seria parte de seu trabalho, mas não a inteireza do que seria indispensável. Os órgãos nacional e regionais de combate ao racismo já deram demonstrações evidentes de que não conseguem articular internamente o cumprimento junto ao MEC, às Secretarias de Educação e às Mantenedoras de Estabelecimentos Privados de Ensino. Portanto, cidadã e cidadão, é momento de ação e de controle social. Logo, sugiro que procures as entidades listadas acima e que persista na cobrança.
As atuações dos órgãos referidos podem levar à inelegibilidade dos gestores e isso pode ser a razão de o cumprimento tão desejado ocorrer. Dessa arte, permito considerar que os Tribunais de Contas são os locais que deves visitar em primeiro lugar (sem esquecer dos demais mencionados ou esquecidos por mim). Aliás, se no seu Estado ou no seu Município, o Tribunal de Contas alegar que não sabe como e o que fazer, encaminhe informações sobre a atuação pioneira do TCE/RS, por meio do GT26-A.
Ainda uma obviedade merece ser referida: a Medida Provisória número 746/2.016 não se refere aos artigos 26 e 26-A. Com efeito, não está afastada a obrigatoriedade de ensinar as histórias e culturas indígenas e afrobrasileiras nos currículos das escolas privadas e públicas de ensino fundamental e médio. Ademais, no que tange à história ao menos, a medida provisória mencionada acima seria inconstitucional por força do que está previsto §1º do artigo 242 da Constituição Federal (“O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro).
Ademais, se MEC, Mantenedoras, Estados e Municípios não cumprem a Lei sem ainda sofrerem penalidade alguma, por óbvio, não teriam motivo para assumir o desgaste político de promover ou de estimular a revogação do artigo 26-A.