Bumba-meu-boi, Boi-de-mamão, Boi-Bumbá, Boi-de-Reis… Talvez você conheça algum desses folguedos de diferentes regiões do país, mas talvez não saiba que em Cidreira, no litoral norte do Rio Grande do Sul, também se dança o boi. Esquecido há quase 50 anos, o Boizinho da Praia ressurgiu por iniciativa de um cientista social disposto a recuperar o folclore e da parceria firmada com uma escola. Atualmente, é um dos projetos que figuram no Mapa de Boas Práticas na Educação, levantamento da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho que valoriza e dá visibilidade a iniciativas gaúchas de impacto social em educação formal ou não-formal.
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Ivan Therra, 59 anos, porto-alegrense formado em Ciências Sociais e graduando de Filosofia, trocou a vida na Capital pelo pacato balneário há duas décadas. Entusiasta do nativismo e das tradições gaúchas, percebeu que a cultural local não apenas perdia força como estava ameaçada de extinção a medida que o folclore marisqueiro, típico do litoral, não era transmitido às novas gerações.
– A gurizada da praia já não conhecia mais os costumes da região, do mar, das correntes, dos ventos, do movimento das dunas, e estava crescendo de costas para as singularidades daqui. O ser praieiro virou algo pejorativo a ponto dos moradores negarem as suas origens, houve um amassamento cultural. Com o Boizinho da Praia, nossa missão é compartilhar o que sabemos para que mais pessoas possam conhecer, gostar e participar da cultura – explica Ivan.
O projeto se iniciou com a pesquisa na memória da população, com entrevistas orais e, tal qual a lenda de origem africana na qual um boi é ressuscitado após morrer por ter sua língua cortada, Ivan fez ressurgir também a lenda do Boizinho da Praia. A versão cidreirense ganha elementos próprios do imaginário popular litorâneo como o Minhocão da Lagoa do Armazém, a Sereia da praia da Cidreira, o Boto Encantado da Barra do Imbé, o mestre Julinho tocador de tambor, as benzedeiras da beira do mar, entre outros seres mágicos da região.
Sem a ajuda de seres sobrenaturais, Ivan conta com a parceria desde setembro de 2014 da Escola Estadual de Ensino Fundamental Herlita Silveira Teixeira, onde o projeto ganhou uma sala para os encontros com os estudantes e pessoas da comunidade interessadas em participar. Lá, durante as manhãs de sábado, os jovens, em sua maioria, mergulham no folclore local por meio das histórias, das cantorias e dos ritmos praianos e ainda aprendem a tocar instrumentos – como violão, baixo, gaita, chocalhos e tambores específicos: tambor de maçambique, tambor-mestre, tambor praieiro, tambor treme-treme, entre outros.
– O projeto tem uma importância muito grande pois é o resgate da cultura praieira e a oportunidade dos jovens de estarem engajados e próximos de uma atividade em que aprendem música, a tocar instrumentos e de serem inseridos na sociedade mostrando as tradições da nossa praia – conta Itamari Pires Jenei Teixeira, diretora da Escola Herlita desde 2016, quando renovou o empréstimo do espaço firmado com o Boizinho da Praia por sua antecessora.
Com quase quatro anos em atividade, o resultado são jovens orgulhosos de sua origem e identidade. Ex-aluno da escola, Gregory Caruccio Figueiredo, 18 anos, está no projeto desde o início. Motivado a integrar o grupo para aprender a tocar violão, ele permaneceu na iniciativa mesmo depois de concluir os estudos.
– Eu gostei tanto que fui ficando porque até hoje eu aprendo coisas novas da minha região. Lá eu conheci pessoas e aprendi coisas que eu não tinha ouvido falar antes – diz o jovem nascido em Capão da Canoa mas que mora em Cidreira desde a primeira infância.
Por influência da escola que frequentou, mas principalmente pelo incentivo do pai, Jas Vasconcelos, de 15 anos, também integra o projeto desde o seu surgimento. Filha de Ivan, a jovem acompanha o pai nos encontros semanais e na luta pelo resgate e difusão da cultura.
– O mais legal é que é um projeto que fala da cultura e dos costume da gente daqui. As pessoas se enxergam, relembram ou conhecem aspectos que estavam se esquecendo. É legal e é interessante participar, mas é, sobretudo, importante para nós – acrescenta a jovem que toca violão, tambores e chocalhos.
O Boizinho da Praia já envolveu cerca de 300 pessoas e fez mais de 50 apresentações em momentos festivos da cidade junto à comunidade. Além disso, já participou de programas gauchescos em emissoras de TV, festivais folclóricos no RS e em outros Estados. Desde 2017, ano em que passou a integrar o Mapa de Boas Práticas como uma das ações que fazem a diferença em suas comunidades, atrai cada vez mais interessados.
– Algumas vezes o encontro acontece na areia, reforçando o vínculo com a natureza, outras vezes, na praça junto à comunidade, favorecendo o desenvolvimento social, intelectual e cultural, aumentando a auto estima dos participantes e fortalecendo o sentimento de pertencimento. Todos os membros estão estudando e melhoraram seu desempenho, sendo que alguns entraram no projeto e, incentivados, voltaram a estudar. Hoje eles sabem que podem evoluir mesmo estando no Litoral – acrescenta Ivan ao citar alguns dos resultados da ação junto aos integrantes.
O Boizinho da Praia foi contemplado com recursos do Programa Mais Cultura nas Escolas, iniciativa do Ministério da Cultura e do Ministério da Educação, que visa valorizar manifestações populares em todo o país. Segundo Ivan, os cerca de R$ 20 mil recebidos desde a aprovação do projeto foram utilizados no de instrumentos, aquisição de novos, vestimentas e transporte para apresentações, entre outros custos de logística. Desde 2016, início do governo Michel Temer, cita que os repasses, que geralmente eram feitos com atraso, terminaram.
– Costumávamos ter apoio Estadual e Federal, mas não o municipal. Não temos dentro da nossa própria cidade o incentivo mínimo que precisamos. Entre todas as dificuldades enfrentadas, a financeira é a que mais nos impacta. Isso porque ainda falta entendimento do poder público e dos mandatários para a importância da cultura, de fortalecer a comunidade e a sua gente. E investir nisso é investir no desenvolvimento dessa pessoas. Há tempo brigamos por espaço, recursos… Dá uma trabalheira danada. Nos sentimos incompreendidos – desabafa.
Há quatro anos, Ivan se dirige todos os sábados pela manhã com um molho de chaves na mão para abrir as portas da escola ocupada pelo seu projeto para receber estudantes, familiares, professores, funcionários e comunidade em geral na tentativa de fazer viver o folclore praieiro. Entre todas as manifestações artísticas do país baseadas na lenda do boi, a de Cidreira deve ser a mais próxima geograficamente de você, mas talvez a mais distante culturalmente. Diminuir esse abismo surgido pelo desconhecimento da própria população, a pequena divulgação e, principalmente, a falta de apoio do poder público, tem sido parte do empenho de Ivan.
Quem é o criador do Boizinho da Praia?
Ivan Therra (foto abaixo) é cientista social e atualmente graduando de Filosofia na Universidade Federal de Pelotas. Pesquisador da cultura popular da região praieira, fundou a Casa da Cultura do Litoral. É ainda compositor, músico, escritor e editor do Jornal O Marisco e ainda realiza trabalhos como cineasta.
É fundamental que a nossa gente praieira se reconheça como pessoas de comunidades singulares, mas com vários momentos comuns no enfrentamento cotidiano. Nossos, cantos nossas cores e nossos tambores nos desvendam e revelam a riqueza e a alegrias de ser gente da beira.